Na última vez que morri, vinha de jangada por um rio lodoso. Lembrava dele vistoso, cheio e brilhante, azul quando o sol estava a pino, laranja vermelho rosa ao fim da tarde, quando o sol batia de lado. Mas ele não era esse rio, era uma água suja que escoava naquele mesmo lugar. Nas folhas de antigo verde, percebi uma tristeza em respirar, as folhas grandes, outrora maiores que eu, então já findavam na escassez de fotossínteses decentes.
Os sapos que coacharam melodicamente em outros dias, agora choravam lamentavelmente, em coachados tristes e desesperados. A guerra civil havia transformado tudo, nem mesmo as hienas riam agora.
Na encosta do rio, onde antes foi uma margem, a jangada arranhou o lodo raso e parou. Peixes e sapos, pequenas rãs, se debatiam na água pouca, tentando subir a correnteza. Noutros tempos, subindo por dentro d'água, era possível se alimentar e procriar à vontade. Mas não hoje. Hoje não é tempo de satisfação.
Entre os peixes agonizantes,garças sujas procuravam o que comer. De penas empretecidas, as garças bicavam em desespero, com sons de lamúria.
A resistência enfraquecia, enquanto a guerra aumentava, e a mantança me assustava. Nunca a vilania foi tão popular, tão aplaudida. Nem em antigos livros de história, quando se falava em escravos e torturas, em presos políticos e pretos amarrados, quando se via povos em campos de concentração, se viu tanto sangue. Um sofrimento latente, quase habitual, me verteu lágrimas de agonia, quando vi que até o que era selvagem se contorcia em guerra, pela vida ou pelo poder, todos estavam em guerra. Lágrimas grossas se misturava ao lodo e um tigre, como aqueles que se via em fotos antigas, de animais que há gerações não se via, a não ser em fotos antigas, corria entre as garças tristes, os peixes desperados e os sapos lamuriosos. Corria de fome, dava patadas no ar, me viu com olhos famintos e quis se alimentar. Nada mais natural que ter fome e querer matá-la. Ao tentar correr caí no lodo escorregadio e pensei que ele poderia acertar a jugular, já que sofrer mais ainda era instintivamente evitável. Não vi onde ele atacou, ou como atacou, mas vi que, de longe, eu morria. E morria mesmo, sem entender ainda porque tão jovem. Talvez não tão jovem, mas ainda com vontades juvenis. Vontades utópicas de sonhos juvenis. Coisas que sabia impossíveis, às vezes chatas, mas ainda sonhadas. E alguém me explicou que, já que eu queria tanto, e inúmeras vezes cheguei a tentar e pedir, resolveram adiantar o processo e acabar logo com isso. Não que me atendessem o pedido, mas já que estávamos ali... Um tigre faminto e um mamífero que, apesar de magro, ainda tinha carne e gordura suficientes para alguns dias de fuga. Um tigre de verdade, talvez o último, ou penúltimo, e um humano, agora tão numeroso e perigoso, que melhor seria perder alguns. Por que não este? Foi o que me perguntei e foi o que me responderam: Por que não este?
Não doeu, não houve luz em túneis, mas houve uma certa explicação intangível, como quando chegamos tão perto da verdade que quase a vislubramos, mas não vemos nada além do que habitualmente vemos, mas com compreensão tão superior que assuta. Como se visse alguma coisa que, apesar de não visível, sabia que estava. Ou era, não sei bem. A verdade é confusa, como cabelos na água. Não se sabe onde começa ou termina, ou como é, ou como explicar, mas sente-se forte e viva, pulsante, uma verdade no ar. E ela estava lá, não me pergunte.
Ver daquele jeito me fez ver que não tinha o que ver. Foi como ver novamente, numa fazenda onde uma negra forte cozinhava para peões, a lama limpa, porque só de terra, entre os dedos do pé descalço. E já então não sabia onde estavam minhas botas, ou se algum dia tive botas e as descalcei, e continuei ali. Percebendo bem no fundo, perto de onde se diz ser superficial, que a verdade é que o mundo estava em guerra. Sempre esteve, como vemos hoje, veremos no vigor da vida e na velhice, como veremos depois da morte. Viver é guerrar, guerrear até o infinito sangrento do fim, quando então toda a guerra se mostrará últil a um fim ainda indeterminado, e tudo fará tanto sentido que não saberemos o que fazer com a luz na cara, então recomeçaremos. E recomeçaremos e recomeçaremos e recomeçaremos até começarmos a perceber que a utilidade da guerra é nos fazer ver que a guerra é inútil. Inútil em sua idéia, em sua prática, em seu objetivo.